Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN. É escritora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus 2023 do MINC, na categoria Romance. 3o324e
A ciência moderna, ao longo dos séculos, fragmentou o conhecimento para dominar o mundo natural e humano por meio da razão, da mensuração e da previsibilidade. No entanto, como nos alerta Edgar Morin, essa racionalidade simplificadora — baseada na lógica binária, no isolamento dos objetos e na exclusão do sujeito — se mostra insuficiente diante da complexidade dos fenômenos vivos, sociais e culturais. Os textos analisados trazem importantes contribuições para esse debate.
O estudo genético sobre o DNA brasileiro, publicado em 15 de julho pelo jornalista Rodrigo Morelli no site *Olhar Digital*, apesar de valioso, ainda se inscreve em uma lógica laboratorial, que foca em dados moleculares, porcentagens e mutações. Esses estudos revelam muito, mas não tudo.
Apesar de suas potências, as pesquisas também se esbarram em limitações ligadas tanto aos recursos tecnológicos avançados quanto à infraestrutura científica e ao financiamento, sob constantes alterações e influências internas e externas. Além disso, podem ser mal interpretadas ou apropriadas de forma racista, como quando se busca “pureza genética” ou a exclusão de determinados grupos.
Para Morin, todo conhecimento é contextual, multidimensional e incerto. Ele propõe princípios como o da recursividade organizacional, no qual os produtos de um sistema retroagem sobre ele, e o da hologramaticidade, segundo o qual cada parte contém o todo. Assim, os povos indígenas e africanos não são apenas “partes” da formação brasileira, mas contêm e refletem a totalidade de nossas contradições históricas, resistências e potências.
A cisão entre corpo e mente, instaurada desde Descartes, é um dos maiores entraves à compreensão da formação humana. Essa dicotomia sustentou paradigmas que afastaram a educação do sensível, da intuição, da corporeidade e da espiritualidade. Mas a experiência dos povos originários e afrocentrados rompe com essa visão fragmentada.
A ancestralidade, no pensamento complexo, não é apenas uma herança genética, mas uma rede de relações que nos constitui no tempo e no espaço — uma memória viva inscrita nos corpos, nos territórios e nas histórias de vida. A identidade ética emerge dessa interdependência: não somos seres isolados, mas nós em uma trama que envolve coletividades, natureza, espiritualidade e cultura.
Isso converge com a crítica feita por Cândida Moraes, ao afirmar que a vida é um sistema dinâmico em constante movimento, no qual o saber não pode ser separado do viver, do sentir e do pertencer. A formação humana precisa superar a pedagogia da separação e assumir a complexidade de um sujeito feito de relações.
A complexidade nos convida a abandonar a ilusão das certezas. O “fim das certezas”, como bem coloca Cândida Moraes, não é uma crise, mas uma abertura à pluralidade, à imprevisibilidade e à construção compartilhada do saber. A vida, como a ancestralidade, não é linear nem previsível, mas sim rizomática, feita de múltiplas direções, recomeços e contradições.
A ancestralidade não é feita apenas de genes — ela pulsa também nas memórias corporais, espirituais, simbólicas e afetivas. Reduzir a identidade humana à composição genômica ignora a teia de significados que constitui o ser.
Nessa perspectiva, a individualidade só se realiza na coletividade, e a formação humana a a ser um processo de reconexão com o ancestral, com o corpo como território de memórias e o espírito como guia de sentido.
As descobertas genéticas são importantes, mas devem dialogar com os saberes dos povos, com suas cosmologias e epistemologias. Precisamos de uma educação que aceite o “não saber” como potência, que reconheça o invisível, o sensível, o espiritual e o coletivo como dimensões do conhecimento.
Nesse sentido, formar-se como ser humano é entrelaçar saberes, afetos, ancestralidades e resistências. Não somos a soma de dados genéticos, nem produtos estáticos de culturas fixas, mas sim seres em travessia, marcados por guerras, diásporas, deslocamentos e encontros.
Portanto, não adianta tentar explicar a formação humana brasileira medindo a história, o sangue e traduzindo em porcentagens do que somos: “60% europeu, 27% africano, 13% indígena.” Tabelar a ancestralidade é negar que o corpo não é só genético — é geográfico, é memória, é corpo-território: tem rio, floresta, flecha partida, cruz imposta e canto renascido.
Enquanto a ciência segue medindo o tempo e a vida humana com seus calendários e instrumentos sofisticados, ignorando nossa teia viva e ecossistêmica, continuaremos conectados ao pulso da terra, pois somos feitos de tempestade, fogo e ventania.
*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).